Golaço de Gelson Oliveira

Tridimensional

Finalmente um disco que faz jus ao jubiloso adjetivo que a Capital carrega em seu nome. Dos versos às melodias, tudo em Tridimensional é expansivo e leve. Pura exaltação da alegria de viver neste lugar e neste tempo.

Mesmo quando fala em abandono e solidão, como na música A flor da vida (com primoroso arranjo de piano, a cargo de Michel Dorfman), não há mágoa nem lamento na interpretação de Gelson Oliveira. Não há espaço para a melancolia e sim, um riso que se desprende, sustentando, em plena geada gaúcha, uma chama acesa no peito.

No reggae abolerado Memórias de um cantador (que encerra o CD e durante algum tempo foi cotado como provável faixa-título), o compositor revela índole cosmopolita e expressa gratidão à sua cidade-mãe: Porto Alegre / Que me fez / E sempre me ensinou / A sobreviver / Em qualquer canto / Do planeta. De fato, as temáticas das canções, assim como os arranjos instrumentais, levam para muito além dos limites do perímetro urbano. O disco lançado no dia 18 de agosto, no Teatro de Câmara Túlio Piva, soa como um bálsamo universal para alma e ouvidos. Golaço de Gelson e do time que o acompanha.

O destaque é Canção do pescador. Sobre consistente linha de baixo de Lucas Esvael e saborosa percussão de Edinho Espíndola, Gelson rega a harmonia com os acordes de seu violão para cantar a vida do homem que busca nas águas seu sustento. É lindo como o cantor consegue, por meio do recurso de sobreposição de vozes, fazer com que a palavra “vida” se abra como imensa rede jogada sobre o azul. E enquanto avança a embarcação, o sax soprano de Pedro Figueiredo brilha como raios de sol sobre o oceano. Tela pintada sobre o fundo aquarelado dos teclados de Luiz Mauro Filho, com pinceladas de guitarra a cargo do próprio Gelson, Canção do pescador é um quadro para ser admirado com o sexto sentido, de olhos fechados, ad infinitum.

Embora sempre tenha sido excelente cantor, Gelson demonstra estar em sua melhor forma. Na balada Que bom ver, um dos grandes momentos do disco, a textura de sua voz, forte e macia, parece deslizar, flutuando sobre a canção. Como leve veludo, afaga nossos espíritos habituados à aspereza da sonoridade urbana. Embora absolutamente original, o esmero na construção da linha melódica lembra alguns trabalhos de Carlinhos Hartlieb, que tinha o precioso dom de evitar que o percurso de seus fraseados levassem ao lugar comum. Como ele, Gelson semeia notas inesperadas pelo caminho – sem perder, no entanto, o sal da simplicidade.

Outro ponto alto do disco, as letras das canções são prova da maturidade lírica alcançada pelo compositor. Os 10 temas que compõem a obra são ricos em achados sonoros (Confie quando juro / Se juro quando beijo), jogos de palavras (Então eu vou sába-do-mingo / Chuva que cai molhando a boa / Terra mãe amanhã) e mensagens inspiradoras (O amor é maravilha / Que o divino criou / E a gente deve merecer / este presente de quem / Nunca nos deixou).

Ser talentoso, por si só, já é um privilégio – mas não basta. Gelson é acima de tudo sábio – respeita o ritmo, o fluir orgânico da existência, e sabe que não se faz um disco como este a cada ano. Paciente bruxo, deixa seu turbilhão criativo alcançar o ponto, como em um caldeirão de ferro ardendo em fogo brando. Assim como acaba de tirar da forja este Tridimensional, seu último trabalho solo data de 1997 e, não à toa, se intitula Tempo ao Tempo.

A sugestão é saborear este disco verso a verso. E ir aos shows. Beber dessa sagrada alegria que o poeta soube traduzir e ofertar. Definitivamente, alegre é o porto que tem entre seus cantores alguém como Gelson Oliveira.



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Carlos Hahn

carlos.hahn@uol.com.br

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